Ator ou não-ator?
Tanto no cinema quanto na televisão um assunto que frequentemente vem à tona na hora da seleção dos atores (casting) é o uso dos chamados não-atores. Como o próprio nome sugere, não-atores são pessoas que não são atores profissionais, ou seja, são pessoas “comuns”.
A opção de incorporar não-atores ao trabalho se deve, em geral, pela busca de um caráter naturalista, menos artificial. Essa prática é tão antiga quanto o próprio cinema e teve como precursor o russo Constantin Stanislavski, ainda no século XIX. Artista interdisciplinar, Stanislavski foi um dos fundadores do Teatro de Arte de Moscou (TAM), em 1897. Já no ano seguinte, o TAM apresentou sua primeira grande peça: Czar Fyodor Ioannovich, e contou com Stanislavski como preparador de atores e não-atores.
Um dos grandes exemplos do uso de não-atores no Brasil aconteceu mais de um século depois da fundação do TAM, com o filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles em 2002. O filme é adaptado a partir do livro homônimo. Cidade de Deus mostra o cotidiano do bairro na periferia do município do Rio de Janeiro e o surgimento do crime organizado.
O elenco principal de Cidade de Deus contou com mais de dez, até então, não-atores, entre eles Leandro Firmino (Zé Pequeno) e Darlan Cunha (Laranjinha). A preparação de atores ficou a cargo de Fátima Toledo. A maioria dos não-atores do filme eram moradores da favela do Vidigal, também no Rio de Janeiro, e foram escolhidos por terem uma maior familiaridade com a temática do filme. Coube a Fátima Toledo orientar e preparar os atores para se comportarem diante das câmeras.
Porém o objetivo desse texto é comentar um outro tipo possível de atuação, um certo hibridísmo entre atores profissionais e não-atores. Como exemplo vou usar o personagem Marcus Álvarez, interpretado por Emilio Riveira, no seriado televisivo Sons of Anarchy, exibido pelo canal FX.
Na série, Marcus é um motociclista mal-encarado e presidente dos Mayans, um motoclube envolvido com o tráfico de drogas no estado da Califórnia; onde só são admitidos homens de origem latina. Álvarez sempre fala em spanglish com seus companheiros de clube, e por diversas vezes é visto em festas da comunidade latina dos EUA.
O ator Emilio Rivera nasceu nos EUA, seus pais eram mexicanos. Ainda na infância, Emilio se mudou com a família para a região de Los Angeles, uma das maiores concentrações latinas no país. Bilíngue desde criança, Emilio fala inglês com um certo sotaque, sendo assim não precisou de nenhuma preparação para se adaptar as falas do seu personagem.
Até aí não há nada de tão especial se não fossem dois fatores: no início da adolescência, Emilio foi membro de uma gangue de rua que traficava drogas, e, há mais de 20 anos, é motociclista. Ou seja, trata-se de um ator profissioanal que praticamente faz papel dele mesmo.
Familiarizado com a violência das ruas e com o universo dos motoclubes, Rivera não teve que passar horas aprendendo a pilotar uma moto ou a manejar uma arma. O resultado é uma interpretação honesta e tão natural que parece que estamos diante de um personagem real. No exemplo a seguir é possível ver todas essas qualidades de Emilio em uma única sequência:
Já aqui é possível ver Emilio na vida real, em um evento de motociclistas nos EUA, a semelhança com o seu personagem é enorme.
A proposta dessa análise é sugerir um novo tipo de pesquisa na hora do casting. Claro que dificilmente vai existir um ator que nas horas vagas é polícial ou detetive, mas talvez haja um que o pai foi policial, ou algum outro parente tenha sido. Outro exemplo, para se interpretar um futebolista o ator não necessariamente precisa ser um craque de bola, mas sendo um fã de futebol ele poderá trazer mais recursos do que um ator que pouco sabe sobre o esporte. Acredito que quanto maior a proximidade do ator com o milieu do seu personagem, mais simples é a sua preparação e maior a sua naturalidade. Essa prática pode ser útil e eficaz principalmente em filmes sem grandes recursos financeiros, onde cada hora de gravação pode fazer a diferença no orçamento.
Lucas Gervilla